26 dezembro 2012

O último cigarro


     O último cigarro.
     O primeiro do dia.
     A primeira tragada lhe provocou uma certa tontura, típica do primeiro vestígio de fumaça invadindo brutalmente o pulmão.
     A última noite não lhe oferecera muitas recordações e o cheiro do último copo de whisky ainda lhe saia pelos poros. Não se lembrava da última vez em que saíra de casa - dias, semanas?
     O primeiro gesto foi se sentar e soltar lentamente a fumaça, desenhando uma cortina branca pela luz fraca dos primeiros raios de sol que passavam pela janela. Os cortes, rasos, no pulso, ainda ardiam.
             Cinzas no chão.
     O último cigarro seria um momento para reflexão, planejamento, mudanças - 
o primeiro pensamento que lhe veio a cabeça, enquanto tragava novamente, dessa vez mais pausadamente, quase um suspiro.
             Fumaça
     As últimas horas da noite anterior lhe vieram em flashes à mente.
     As primeiras lembranças, vagas, não lhe serviram como base para um reflexão. Estranhas. Esparças. Esfumaçadas
             Cinzas no chão
             Melhor ir mais longe, no passado. Tragou novamente.
     Primeiro, lembrou-se rapidamente da mãe. Estranho, pensou.
             Fumaça
     A última vez que visitara a mãe, prometera que iria mudar, parar de fumar, lembrou-se.
             Melhor pensar em outra coisa. Tragou. Profundamente.

             Fumaça

             Cinzas.
             Melhor pensar em alguma coisa, pensou.
             Tragou.
             Fumaça.
             Cinzas
     Primeiro pensar, depois refletir. Mas pensar em quê? Não havia nada para pensar.
             Melhor, então, planejar, buscar mudanças, tragou.
             Fumaça.
     Última tragada, não há mais tempo.
             Cinzas.
             Melhor deixar isso pra lá, bobagem, concluiu jogando a bituca no vaso do cacto morto.
             Fumaça
             Melhor apanhar mais um maço na gaveta antes de sair, refletiu, talvez passasse na casa da mãe mais tarde, planejou, e não queria ficar sem cigarros pelo caminho.
     Mudou o cato de lugar, talvez voltasse a viver com um pouco de sol; soprou as cinzas do chão e saiu sem protetor solar.



Isaac Ruy

21 julho 2012

Voa passarinho

O pássaro colorido da avó ficava preso na gaiola. 
Não cantava, simplesmente observava, tristemente, àqueles que voavam livres ou descansavam no fio de alta tensão.
O menino olhou por um tempo e coçou a cabeça desconfiado.
Pegou uma cadeira, subiu e abriu a portinhola da gaiola, vagarosamente, para a avó não acordar e descobrir a arte.
Nhééééc...
O pássaro permaneceu imóvel, no fundo da gaiola.
__Voa passarinho!
Nada.
Subiu novamente na cadeira e envolveu o pássaro com uma das mãos, cuidadosamente, para não machucar o frágil corpo da ave. 
Depois de retirá-lo da gaiola, esticou os dedos.
__Voa passarinho!
Nada.
Uma ideia.
Pulou na cadeira e com um impulso forte lançou, violentamente, o pássaro o mais alto que conseguiu.
Paf!
O pássaro se chocou, violentamente, contra o gerador do poste de energia e, depois de eletrocutado, caiu esfumaçante no chão.
O garoto se aproximou do pássaro e o tocou com a ponta do tênis.
__Voa passarinho.
Nada.
Escutou os passos da avó se arrastando pelo corredor.
Escalou a cadeira, jogou o corpo negro do pássaro, rapidamente, pela portinhola da gaiola, fechou e se sentou na cadeira, observando, tristemente, àqueles que voavam livres ou descansavam no fio de alta tensão. 
A avó olhou por um tempo e coçou a cabeça desconfiada. 
Abriu o portão.
Nhééééc...
__Vai brincar, menino!
Nada.
__Então vem me ajudar a dar comida pro passarinho.

Desesperadamente, o menino voou pela rua para aproveitar os últimos minutos de liberdade.


Isaac Ruy

11 junho 2012

Influente



O mendigo, folheando o jornal, que lhe serviria de coberta, viu uma notícia anunciando que a obra "A fonte", de Marcel Duchamp, fora escolhida como a arte moderna mais influente da história.
Perguntou a uma mulher de óculos, sentada no ponto de ônibus, com cara de professora, o que significava "influente". Ela não soube explicar, ou não quis, mas o menino, que estava ao seu lado, retirou um enorme livro da mochila e leu em voz alta, para que ele escutasse. "Influente: que influi; que tem autoridade, prestígio; que exerce influência sobre os demais".
O mendigo voltou para o banco e, depois de muito observar a imagem do "mictório assinado", que ilustrava a reportagem, levantou-se e começou uma caminhada com passos firmes e destino certo.
Influenciado pela obra, pretendia assinar todos os mictórios e vasos sanitários do banheiro público da praça.
No caminho, já imaginava a quantos não "influenciaria" com aquele gesto simples, mas artístico, de assinar o local onde os homens urinam. Teria, desse modo, "prestígio, autoridade".
Chegando ao banheiro, notou que já havia assinaturas por todo lado: paredes, portas, chão, teto e até no espelho quebrado. De fato, não havia nenhuma assinatura nos mictórios, mas naquele momento lhe pareceu tão menor, insignificante e tolo assinar naquele lugar, que se escondeu em uma das cabines e ficou ali, cabeça baixa e em silêncio, sentindo-se envergonhado a pensar que aquele era, de fato, o lugar mais apropriado para que assinasse.
Levantando-se para sair, observou a quantidade de desenhos e frases escritas na porta. Seria aquilo arte também? Provavelmente sim. Ao menos parecia ter dado mais trabalho e ser mais artístico que a assinatura no mictório.
Questionou-se, refletiu e, depois de muito ler e observar a arte que o encarava, sentou-se e, “influenciado” pelas pornografias descritas e ilustradas na porta, masturbou-se ali mesmo.
Saiu do banheiro, voltou para a praça, jogou a página da reportagem no lixo, se cobriu com o restante do jornal e, feliz, refletiu que, de fato, ele existia apenas para ser influenciado, não para influenciar ninguém.




Isaac Ruy



02 junho 2012

Sonhos


Noite.

Todos em silêncio.
Os sonhos embalam todos na casa...
os que dormem o sono dos justos
e o ladrão que furta a TV plana de LED 46 polegadas com conversor digital integrado full HD 3D/internet vídeo.
Isaac Ruy



01 junho 2012

Arrepio ambíguo

Noite chuvosa,
os corpos nus,
molhados,
deitados no chão,
arrepiados...

frio ou tesão?

Isaac Ruy

31 maio 2012

Fênix

apenas uma fagulha...
para renascer,
brilhar o poder,
voar a liberdade
e morrer,
queimando em cinzas,
até restar
apenas uma fagulha...



Isaac Ruy



22 março 2012

Desejo

Sempre disse que desejava morrer dormindo.
Dormiu no volante.
Morreu.

Isaac Ruy

15 março 2012

Divirta-se!

Clique sobre os quadrados musicais e divirta-se com sua composição!
Espaço para restart!

05 março 2012

Donadecasahipocondríaca

acordoucom
dordecabeça
levantoulabirintite
trêscapsulas
começoualimpeza
dobanheiro
refluxogastrite
esfregouchãoparede
artroseartrite
doiscomprimidos
limpouquartos
herniadedisco
salaevaranda
hipoglissemia
quarentagotas
lavouasroupas
brancasecoloridas
leveanemia
cincopílulas
passoudobrou
fortesinusite
escolheufeijão
asmabronquite
picouacarne
esquentouarroz 
oitocomprimidos
úlceranervosa
lavoucopos
arritmiatremedeira
noventagotasduaspílulas
secoupratos
capsulascoloridas
guardoutalheres
arrumougavetas
espasmosalucinação
comprimidospílulasgotas
fraquezacovulsão
morreucaída
entreaspanelas
depressão

Isaac Ruy

26 fevereiro 2012

Fluxo XII

conferiu se o gás estava fechado conferiu porta por porta janela por janela se estavam trancadas correu pelo corredor e piscava piscava piscava piscava piscava precisava parar de piscar de piscar de piscar correu pelo corredor estava nervoso piscava piscava sentou levantou sentou levantou sentou piscava piscava piscava fechou os olhos e então começou a ranger os dentes levou a mão à boca precisava parar queria parar começou a roer uma unha duas unhas queria parar precisava parar três unhas quatro cinco seis queria parar sete oito precisava parar nove dez abriu os olhos levantou sentou levantou sentou levantou correu pelo corredor entrou no banheiro lavou o rosto e as mãos e as mãos e as mãos e as mãos e lavou as mãos correu pelo corredor abriu a gaveta fechou abriu fechou abriu a gaveta bagunçou e arrumou as meias as cuecas por ordem de cor abriu o guarda-roupa fechou abriu fechou abriu o guarda-roupa misturou e organizou as roupas os sapatos por estação correu pelo corredor foi até o armário arrumou os alimentos por ordem de validade os produtos de limpeza por ordem de tamanho correu pelo corredor trocou os quadros de lugar destrocou trocou e destrocou os quadros de lugar conferiu se o gás estava fechado conferiu porta por porta janela por janela se estavam trancadas esgotado parou em frente ao espelho respirou profundamente e frente a frente com a própria imagem percebeu que estava diferente leve tranquilo aquele reflexo era de alguém que podia e tinha controle sobre si mesmo caminhou pelo corredor lentamente sentou piscando normalmente olhou para as mãos limpas passou as mãos pelo rosto vagarosamente acariciou os cabelos carinhosamente e sorrindo arrancou o primeiro fio de cabelo

Isaac Ruy

02 fevereiro 2012

Pequenas histórias


Pequena história sobre o homem que apesar de não fumar disse à esposa debruçada na janela que ia até a venda comprar cigarros...

Saiu de casa no crepúsculo
e nunca mais voltou.

Pequena história sobre a esposa do homem que apesar de não fumar disse que ia até a venda comprar cigarros e nunca mais voltou...


Ainda o espera debruçada na janela
fumando um maço por noite


Isaac Ruy


25 janeiro 2012

Viúva negra

Depois de matar o oitavo marido foi às compras.
Não por raiva, ciúmes, vingança ou falta de amor. 
Nada disso.
É que preto lhe caía muito bem.

Isaac Ruy

23 janeiro 2012

Pas de deux

A bailarina, desiludida,
apertou o corpete novo, escolheu o mais belo tutu, vestiu a meia, prendeu o cabelo num coque apertado, se maquiou, colocou a sapatilha de ponta, deu um laço em cada fita, passou a corda no pescoço
e deu sua última pirueta pendurada no ventilador de teto
- a pirueta mais longa de toda sua carreira.


Isaac Ruy



22 janeiro 2012

Bastou um sorriso.
Desfiz-me em pó
e (in)ventei-me pelo ar.
Leve, me espalhei por seus pelos e cabelos:
leve-me, agora sou teu.
Deixe-me sentir suas curvas, seu balanço,
adentrar suas intimidades
antes que a chuva nos separe
e eu escorra
- solitário -
por seu corpo molhado
de volta ao barro da criação.

Isaac Ruy

02 janeiro 2012

Meu Deus!

Ali:
trabalhando, comprando, comendo
- repetidamente e compulsivamente.
Concentrado, se divertindo
                                         frente a TV
distraidamente...
Meu Deus!
é uma máquina.

Isaac Ruy