29 agosto 2010

Recluso



Estava preso havia anos e a escuridão era sua única companhia.
A reclusão para o aprendizado.
Queria aprender a valorizar a beleza simples das coisas e a desenvolver a paciência que tanto admirava nos sábios.
Na saída foi tão ávido em direção à luz que ficou cego instantaneamente.
Não tinha aprendido nada. 

Isaac Ruy


28 agosto 2010

Distração

Se distraiu com o canto dos pássaros
                                                                 e nem viu...

Isaac Ruy

26 agosto 2010

Carta

       Apaixounou-se perdidamente e decidiu escrever uma carta.
       Colocou tanto de si naquelas palavras que a tinta vermelha tornou-se sangue ali borrado em curvas caprichadas de letras de amor. Com a carta entregou também seu coração.
       Ela, depois de uma leitura rápida e um sorriso de escárnio, amassou o papel, que antes fora cuidadosamente dobrado, e o jogou no chão úmido de chuva.
       Ele ficou parado, sangrando e observando as palavras sumirem em segundos no papel molhado enquanto os olhos marejados transbordavam a dor que imaginava que jamais cicatrizaria.
       Ainda magoado viu a outra passar.
       Apaixounou-se perdidamente e decidiu escrever uma carta.

       Escolheu tinta azul dessa vez.

Isaac Ruy

22 agosto 2010

Janice Esquisitice

       Na escola era conhecida como Janice Esquisitice.
       Penteava os cabelos ruivos e crespos milimetricamente ao meio. Janice Esquisitice.
       Tinha olhos grandes e esverdeados, como os da mãe; o nariz adunco e longo, como o do pai; e uma boca fina e comprida, que ninguém sabia de quem herdara. Janice Esquisitice.
       Na escola não falava com ninguém, mas todos falavam com ela: fazendo piadas de suas roupas ultrapassadas e de seu corpo magro, gargalhando sobre o modo como enrubescia por trás das sardas, gritando o apelido que a acompanhava desde sempre. Janice Esquisitice. Janice Esquisitice. Janice Esquisitice.
      À noite, depois de jantar com os pais e irmãos, escrevia planos de vingança com caneta glíter em um bloco de folhas brancas. Janice Esquisitice.
      Um dia resolveu colocar sua vingança em prática, mas ninguém falou nada. Nunca mais ninguém disse nada.


Isaac Ruy

15 agosto 2010

Frustrações nas janelas

1
Todos os dias Janaina acordava cedo, tomava um banho frio da caixa e, mesmo sendo comprometida, passava nua diversas vezes pela janela do fundo do depósito para ser vista pelo novo vizinho, que tomava sol de óculos escuros na janela em frente. 
I
Todos os dias Nilson acordava cedo, pegava os óculos escuros e, guiado pela bengala, ia para a janela do apartamento em que morava sozinho e ficava ali sentindo o calor do sol de manhã, o toque da luz trazia lembranças de quando ainda enxergava.
2
Um dia Janaina comprou um perfume pelo catálogo e depois de usar quase metade do vidro foi para a janela e disse um "oi" para o vizinho. Um vento forte, desses que chegam tão rápido quanto vão, assustou e derrubou os óculos pretos do homem, deixando a vista os olhos brancos que fitavam o nada. Janaina gritou, fechou a janela e, furiosa, colocou um armário em frente para esquecer e nunca mais voltar a ver aqueles olhos outra vez.
II
Um dia Nilson sonhou com anjos, havia anos que não sonhava mais. Feliz e realizado foi para a janela sentir o sol. Um vento forte, desses que chegam tão rápido quanto vão, derrubou seus óculos mas trouxe um perfume que nunca tinha sentido e uma voz tão doce e suave como a dos anjos. Nilson se apaixonou e, ansioso, passou o resto do dia, e o resto da vida, ali sentado e sozinho, lembrando da voz, do cheiro e esperando o anjo passar outra vez.

Isaac Ruy

12 agosto 2010

Eco

Disse o que queria dizer
e ouviu o que não queria ouvir.

Isaac Ruy



essa imagem é uma brincadeira com a ambiguidade da palavra eco e do desenho cíclico.

05 agosto 2010

Geriátrica metafórica

       Estava cansada. Pensou em escrever um bilhete, uma carta, mas estava cansada.
       Sentou-se. Pegou as longas agulhas com os dedos longos e começou a tricotar a própria forca.
Isaac Ruy

04 agosto 2010

Fluxo IV



Chegou em casa com um sorriso que não expressava nem metade nem um terço só ilustrava um milésimo da felicidade que estava sentindo pois finalmente finalmente ela aceitara o convite para jantar depois de anos tentando sim pois ele sempre a convidara desde que ela fora transferida para o departamento dele e aquela noite seria memorável com certeza seria a melhor noite que teria em anos e merecia uma música uma não várias e então colocou sua seleção de óperas pois adorava ópera e nada melhor que ópera para ouvir quando se está feliz pois a música erudita o fazia delirar e sonhar e viajar entre sonhos de imagens psicodélicas enquanto o corpo produzia movimentos desconexos que nem ele sabia que podia fazer e foi ópera que ouviu durante horas e cantou ópera e gritou ópera e dançou ópera e sorriu tanta ópera que se esqueceu do encontro.



Isaac Ruy

02 agosto 2010

Túmulo

Parecia cena de filme.
Chovia.
Os guarda-chuvas pretos dominavam a cena.
Sons de choro, cochichos, olhares.
Depois tudo passou, tudo mudou.

Fazia sol.
O dia estava azulado.
Os pássaros cantavam ao som do farfalhar das árvores.
O cemitério estava vazio,
mas as rosas vermelhas estavam ali, intactas, relembrando o sangue derramado.
Seriam o único vestígio de vida,
se não fossem feitas de plástico.


Isaac Ruy