27 setembro 2010

A menina de lá


Foto minha que foi capa da Revista Literária Terceira Margem.

Foto: Isaac Ruy
Título: A menina de lá (sugestão do Christian)
Modelo: Tayla Ruy, minha priminha...

Veja a revista aqui:

26 setembro 2010

Depois

       O ar quente dominava a cena. O suor desenhava os traços dos corpos que há poucos instantes ainda estavam na cama, e, apesar de ainda ofegantes, eram conduzidos agora por uma frieza muda. 
       Ela, sentada no beiral da janela,  mantinha o rosto inexpressivo, como se todas as emoções lhe tivessem sido tomadas a força. Já não se importava com ovestido entreaberto, que deixava a mostra um seio nu e as coxas magras de menina moça. Os olhos perdiam-se no longe mirando a chegada da noite por traz dos telhados velhos e cheios de lodo antigo. 
       Ele se levantou da cadeira, colocou a camisa sem abotoar e ficou parado ao lado da cama. Acendeu um cigarro e então dialogaram em silêncio por alguns instantes. Sem trocarem sequer um olhar, saiu. 
       Sozinha, fechou os olhos e sentiu cheiro de chuva. Logo as tristes lembranças seriam levadas com a enxurrada e, de alma lavada, estaria pronta  para as flores que a primavera traria. Trovões anunciavam o que estava por vir.
       Assustou-se com as batidas na porta, abriu os olhos e voltou para a realidade do quarto
       Ainda estava cedo para sonhar

Isaac Ruy

23 setembro 2010

Fluxo V

saiu de casa apressada mas odiava estar com pressa odiava ter que andar mais rápido do que quando se está sem pressa pois tinha problemas com suor ela odiava suor ai como odiava sentir o suor escorrendo pelas costas e pela testa e acumulando nas axilas e desenhando um grande círculo ali e odiava círculos odiava as formas curvas gostava de ângulos e daquilo que era reto como o caminho que seguia correndo e olhando pois adorava observar mas odiava ser observada e olhava as pessoas para ver se estava sendo olhada e então a mulher a encarou e o homem a encarou e as crianças e o cachorro deitado na sombra a encararam e ela odiava crianças e cachorro e até mesmo o mendigo ousou lançar-lhe um olhar e ela odiava a cada um deles e odiava cada um dos olhos que a fitavam e enquanto cruzava uma vitrine espelhada que odiava percebeu que estava com a touca de banho na cabeça pois odiava molhar os cabelos de manhã e então arrancou a touca e jogou em uma lata de lixo sem remorsos pois há anos já odiava aquela touca
Isaac Ruy

06 setembro 2010

Vitrola

       Chovia. Lentamente, pegou o disco empoeirado e, cambaleando, encostou levemente a agulha pontiaguda com as mãos trêmulas.
      Sentou-se. No escuro, a melodia doce entoava reminiscências que surgiam suaves ao soar das notas de um passado resplandecente.
       Recordou os brinquedos, o olhar da avó, a casa amarela, os amigos da escola, a morte do gato, o tombo do pé de manga, os sonhos, o primeiro beijo - e como eram macios os cabelos dela, a nova rua, a nova casa, o barulho do portão, as fotos da família, os parceiros de jogo, a primeira namorada - e única, o cheiro do perfume dela e o som da respiração ofegante enquanto dormia encostada em seu peito e o modo como ela sorria quando na verdade estava triste e a decepção de não poder ser mãe e a inocente culpa que ela carregava. E se lembrou das brigas, da bebida, das noites na rua, das lágrimas dela, das malas na saída da porta e da saudade na entrada e das cartas não respondidas e amontoadas na caixa vermelha sobre a estante e da saudade que não envelheceu com ele mesmo depois de dezenas de anos sem notícas. E percebeu que estava só, que também não passava de uma lembrança, uma vaga recordação do que um dia fora, e que não havia, ou não ouvia, mais som chuva e murmúrio na rua e ranger de cadeira e nem respiração ouvia, ou havia, somente o silêncio...
somente o silêncio...
somente o silêncio...
somente o silêncio...
somente o silêncio...
somente o silêncio...
somente o silêncio...

Isaac Ruy