Chovia. Lentamente, pegou o disco empoeirado e, cambaleando, encostou levemente a agulha pontiaguda com as mãos trêmulas.
Sentou-se. No escuro, a melodia doce entoava reminiscências que surgiam suaves ao soar das notas de um passado resplandecente.
Recordou os brinquedos, o olhar da avó, a casa amarela, os amigos da escola, a morte do gato, o tombo do pé de manga, os sonhos, o primeiro beijo - e como eram macios os cabelos dela, a nova rua, a nova casa, o barulho do portão, as fotos da família, os parceiros de jogo, a primeira namorada - e única, o cheiro do perfume dela e o som da respiração ofegante enquanto dormia encostada em seu peito e o modo como ela sorria quando na verdade estava triste e a decepção de não poder ser mãe e a inocente culpa que ela carregava. E se lembrou das brigas, da bebida, das noites na rua, das lágrimas dela, das malas na saída da porta e da saudade na entrada e das cartas não respondidas e amontoadas na caixa vermelha sobre a estante e da saudade que não envelheceu com ele mesmo depois de dezenas de anos sem notícas. E percebeu que estava só, que também não passava de uma lembrança, uma vaga recordação do que um dia fora, e que não havia, ou não ouvia, mais som chuva e murmúrio na rua e ranger de cadeira e nem respiração ouvia, ou havia, somente o silêncio...
somente o silêncio...
somente o silêncio...
somente o silêncio...
somente o silêncio...
somente o silêncio...
somente o silêncio...
Isaac Ruy