15 abril 2016

MACRO

Sozinha, no alto do viaduto, sentia o vento fraco embaraçar os cabelos que balançavam ao som das buzinas e motores dos carros que seguiam em manada abaixo de seus pés; sabia que pássaros silvavam, em algum lugar, ainda que o som da multidão no ponto de ônibus da esquina e os berros do vendedor ambulante de produtos importados impedissem que a melodia sibilante lhe chegasse aos ouvidos; a boca seca ainda trazia o gosto do último trago de cigarro com Coca-Cola e o ar cheirava a cidade, fumaça, urina e suor das seis da tarde. Então, olhando para baixo e reconhecendo sua própria insignificância, quase esquálida, diante da situação presente na imensidão urbana, escalou a grade de proteção até que sentisse a liberdade de não ter uma cela que a separasse do vazio, do nada; ela era o nada e o tudo naquele instante. Balbuciou algumas palavras silenciosas para si mesma e teve a certeza do que gostaria de fazer: em poucos segundos acertava, certeira, no parabrisa do caminhão que costurava o congestionamento, uma enorme gota de cuspe, bem no meio, no centro, do vidro, espalhando gotículas de espuma e escorrendo gosmenta e úmida e pegajosa pela transparência vitral, refletindo as cores de um ocaso cinza, amarelo e cinza, que iluminava e sinalizava o horizonte. Sorriu e partiu, não precisava de mais nada, percebeu que a vida na cidade é assim, a felicidade precisa estar em coisas simples.

ISAAC RUY

Texto escrito para o projeto Escribas do Breu realizado pelo SESC Rio Preto