30 março 2016

Carta de amor, para alguém que ainda não conheci

talvez eu te encontre hoje pela manhã, na fila do pão de queijo, da padaria da esquina; talvez esbarre em você no mercado, próximo à gôndola dos repolhos roxos; talvez eu te ceda a vez na fila do banco, e nossos olhares se cruzem, e surja aquilo que chamam de chama da paixão, e nos beijemos, ali mesmo, entre a fila preferencial e a porta giratória travada por alguém que esqueceu as chaves no bolso; talvez você me feche no cruzamento, no sinal amarelo, e, depois de dois ou três palavrões e alguns gestos obscenos, eu reconheça em você a pessoa dos meus sonhos e você veja em mim a pessoa que sempre sonhou; talvez, com algumas moedas, eu te ajude a completar o valor da passagem de ônibus e sinta que você é minha cara metade, e te acompanhe até sua casa, e nunca mais saia de lá; talvez eu trombe com você na esquina e derrube seus cadernos, suas caixas ou sua sacola de laranjas e, enquanto recolhemos uma a uma, troquemos sorrisos e pedidos de desculpa, e talvez, então, eu te pague um sorvete de coco queimado que quase ninguém gosta mas, coincidentemente, é o nosso preferido, e percebamos ali, com as casquinha derretendo, pingando e escorrendo entre os dedos, que somos almas gêmeas; talvez eu te veja na saída do cinema e te siga por mais de dezessete quarteirões até sua casa, rezando para que olhe para trás e se apaixone por mim, ou que não chame a polícia; talvez eu entre numa loja de móveis e eletrodomésticos, compre uma coisa qualquer, parcelada em 24 vezes sem juros, e te veja pagando um boleto atrasado, e percebamos, num instante, que fomos feitos um para o outro, e façamos sexo, escondidos, no depósito, entre as caixas de fogão 4 bocas e refrigeradores frost free; talvez, no caixa da farmácia, você me empreste uma caneta esferográfica, azul, para que eu assine o cheque, e, depois de agradecer, eu anote meu telefone na bula do seu remédio para cólicas renais; talvez nossas mãos se toquem, sem querer, na escada rolante, e percebamos, enquanto subimos, que já nos conhecemos de vidas passadas e nos casemos uma semana depois em Las Vegas ou num cartório qualquer de uma cidadezinha do interior; talvez já dançamos e fumamos e rimos e bebemos na mesma festa, mas, como dois loucos, não conseguimos nos ver enquanto esperávamos por ajuda, desacordados, na fila do banheiro ou na calçada mais próxima, e, depois, solitários e tristes, curtimos a ressaca, cada um em sua própria casa; ou talvez nunca tenhamos nos visto pessoalmente, mas, ao ler, você reconheça que essa carta foi escrita para você, e então me deseje todas as noites enquanto sonha comigo, ou enquanto toma banhos quentes demorados pensando em mim; talvez só encontre essa carta anos depois, perdida dentro de algum livro de autoajuda, em um sebo do centro da cidade, ou talvez você nem sequer leia, mas sinta pelo perfume deixado nessa carta que fomos feitos um para o outro; talvez já esteja com outra pessoa mas quer, ou um dia há de querer, estar comigo secretamente; apenas saiba que estou aqui, estou te esperando, independente da situação ou dos pormenores, não sou exigente, não me importo com particularidades, sejamos felizes, desde que nossos ascendentes combinem, claro.


10 março 2016

Naufrágio

o som grave dos trovões estremece as estruturas do que sobrou da embarcação
gritos destroços trevas e clarões se misturam
naufrágio
a onda bravia lança as ruínas contra as pedras
e dança e balança e ondula contra a lança o corpo quase sem vida
no ápice
o silêncio
sozinho jaz
entre espuma e sangue
o tempo se reconfigura
um canto doce alivia as feridas
entorpece
inebria
a tempestade ainda precipita
mas somente notas serenas pairam sobre o oceano
então
lentamente
afunda
num mergulho rumo ao infinito
se entrega ao mar
sem medo do que virá
sabe que retorna ao útero
de sua mãe
Iemanjá

Isaac Ruy